quinta-feira, 28 de abril de 2011

Obituário

Ele sabia que já não se fazem mais obituários como antigamente. Nem
mesmo os jornais são feitos como antes. Aliás, poderia ser escrito um
obituário para quase tudo, já que a maior parte das coisas de que nos
lembramos parece ter se perdido, ficado enterrada em algum
lugar. 


Mesmo assim insistiu com a editora do jornal. Pediu, quase
implorando, que ela publicasse aquela pequena homenagem para alguém
que havia morrido. Pra piorar, a morte havia acontecido há 22 anos.


Como explicar a publicação, numa página nobre, de uma nota
com a data de vencimento expirada há mais de duas décadas?
De tanto insistir ele a convenceu de ler o texto. Caso não
gostasse podia simplesmente manter o não inicial. Sua atenção já era
um bom caminho andado. E assim estava escrito:

Não acordou naquela manhã pela primeira vez em 51 anos. Seu coração
decidiu que era hora de parar de bater por aqui. Homem simples, pouca
vezes alguém ouviu de sua boca um palavrão ou uma frase em voz alta.


Era manso... Humilde no trato, amável no jeito, simples na conduta,
inteligente e bem informado. Trabalhou muito, a vida toda. Da roça pra
cidade, onde serviu o exército, foi barbeiro, estudou, virou bancário,
contador, corretor, vendedor, viajante. Até numa chácara chegou a
levar a família pra morar. Para os filhos herança não deixou. Não
dessas que se conta no banco. Mas o amor pelos livros, o gosto por
modas de viola, o encanto pelo canto dos pássaros, pelo sabor do peixe
pescado na hora, seu jeito de acreditar sem precisar ter fé e de ter
fé mesmo quando desconfiava.


Não era de ir à igreja; trazia uma reverência quase santa pela
honestidade. Não roubava, nem no truco, na canastra, na sinuca, no
xadrez. Gostava de um cigarrinho, lá de vez em quando, ou uma
cachacinha de alambique. Tinha que ser das boas. Se era pra ter
prazer, que ele fosse genuíno.


Adorava um bom Dodge Dart, ou um Charger RT. O Opala também era
paixão. Falava quase emocionado sobre a potência daquele motor, o
ruído clicado da suave troca de marchas. Teve também seus fusquinhas.
E por um bom tempo carregou mulher e filhos numa velha e poderosa
bicicleta preta, Gallo.


Por falar em filhos, além da esposa deixou os três bem criados,
encaminhados, como diria. Não chegou a ver todos os netos. Quer dizer,
não com os olhos que um dia contemplaram seu time quebrar um jejum de
23 anos na fila. Curioso como aquele coração aguentou tanto e ficou
fraco por tão pouco. Nunca falou sobre uma possível doença. O Mal de
Chagas, provável causa da morte, só surgiu como informação muito tempo
depois.


Sua morte aconteceu num 21 de maio. Para evitar rompantes de socorro
ele se foi quando os filhos estavam longe. Não houve despedida. Não do
jeito que a imaginamos, ou desejamos. Foi um corte, um desligar sem
chance, uma parada obrigatória.


Seu nome? Deixo guardado no coração de filho. Você pode preencher com o nome de um pai amado. Se também estiver com saudade...