terça-feira, 12 de novembro de 2013

Asas do coração

No leito de morte reuniu os filhos. Os quatro não se viam há um bom tempo. Cada um tinha ganhado rumo,  como dizem. Vivendo numa confortável distância, sem precisar de um ambiente que tinha deixado de ser família e se transformado num inferno. A mãe, separada dele desde sempre, não sabia se ia, se ficava, se sorria.  A dor  era maior que a saudade, embora ela também existisse.

O quarto do Hospital tinha oxigênio nos tubos mas pouco ar respirável. Não cabia tanta gente desconectada num lugar só. A conversa em tom de despedida seria difícil. Poderia tornar-se insuportável se alguém quisesse explicar o inexplicável, ou relembrar algo  que o tempo já tinha se encarregado de anestesiar.

Com pouca voz e pouca vida ele falou pouco. Seu pedido de perdão foi nominal, mas sem detalhes. Para cada filho uma  frase ou duas e lágrimas de sobra. Mais dele do que deles. Era um choro de arrependimento sem censura. Um choro de despedida de tudo, com doses pesadas de medo.

Ele sabia que era seu último dia. Não queria deixar o que restava dele sem recuperar um pouco do amor que existiu em algum lugar lá atrás.

Foi quando a mãe chegou. Era ainda uma mulher linda. O tempo não conseguiu apagá-la. E sua força tinha energia suficiente para uma família inteira. Sabe-se lá  Deus onde ela achava tanto combustível para viver. Entrar naquele lugar, juntar mãos, beijos e abraços, chamar para a vida gente que nem se falava mais, suplicar que ninguém saísse dali sem perdoar e se permitir   recomeçar.  Parecia  algo sobrenatural… E ela era mesmo uma mulher de outro planeta.


Quando ele fechou os olhos para descansar de vez, de fato serenou. Antes do fôlego final viu um pouco do céu aqui na terra, através daquela que um dia ele chamou de meu anjo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Eu, falecido


No dia em que eu morri, veio tanta gente. Alguns  eu não via há muito tempo e depois de alguns dias minha família nunca mais os viu. Sumiram. Bateram o cartão no velório e a lágrima secou logo. Talvez pensem que o abraço que deram duraria para  outra  vida toda. Não os cobro, nem culpo. A morte faz dessas coisas mesmo. Reúne saudosos, liga e religa familiares e dá uma oportunidade para que muita gente se reveja, retome a prosa, conte uns causos e até dê algumas risadas no meio da madrugada, com as velas pelo meio.

No dia em que eu morri, chovia. Lá fora muito, na capela um pouco. Na goteira perto das cadeiras e nos olhos de quem chovia de saudade. Lágrimas bonitas, salgadas de dor e doces de amor. Claro que se eu pudesse dizer alguma coisa eu diria. Mas não podia. A hora era de um silêncio meu que sinceramente não me serve. Falante, com palavras pela boca ou escritas pelo tempo, ficar quieto enquanto os outros diziam não foi nada fácil.

Ainda mais quando elogiavam muito, num exagero que não me deixava vermelho porque eu já estava roxo. Alguns, no canto e na calçada faziam umas críticas mais pesadas. Talvez injustas. Mas tanto faz, não dava pra me defender e nem precisava. No dia em que morri, brigar era algo que eu não queria, nem mesmo com quem por dentro ria. Deixa pra lá. Um dia a gente se reencontra e em outra vida talvez o perdão e a compreensão sejam mais fáceis de dizer e fazer.

No dia em que eu morri, o mais difícil foi não dizer adeus mais vezes. Gente que amo muito ainda estava agarrada a quem eu fui, sem querer me deixar ir para onde serei agora. Compreendo, claro. No fundo eu não queria deixar ninguém pra trás. E por falar em fundo, lá só ficou o corpo. Eu fui para o alto, longe de uma terra onde a violência, a dor, a insegurança e a intolerância fizeram dela um lugar difícil de viver  e fácil de morrer.

No dia que chegar teu dia, conversaremos sobre…