quinta-feira, 14 de abril de 2011

Encantado

Que cantor era o  Marcelo Barroso. Voz poderosa, afinada, bonita, entoava Gardel, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, com a mesma qualidade com que cantava clássicos italianos, franceses e até mesmo uma ou outra peça  mais refinada. Gosto bom, talento de gênio, um baita intérprete. Um dia, num dos programas de rádio em que se apresentava, ela apareceu no estúdio. Foi entregar um recado de última hora pro locutor. Seu Edgar, desculpe  o incômodo, mas é urgente e o Robertinho precisa que o senhor dê esse recado agora, antes do cantor se apresentar...

Enquanto o Edgar  lia o reclame, nosso Marcelo  seguia com olho esticado os passos da moça saindo do estúdio. Fingiu uma ida ao banheiro para seguir um pouco mais, corredor afora. Passou em frente a sala onde ela trabalhava, matou um tempinho no WC e deu mais um oizinho na volta.  Retornou como um balão de gás hélio. Flutuava! Nada o faria sair dali sem o telefone dela e um convite para um jantar. Naquela época convidar para sair  era algo obrigatório. Beijar, pegar, ficar, ainda precisavam  de rituais que já saíram da moda.

Naquela manhã nosso cantor cantou como nunca. El dia em que me quieras foi tão bem interpretado que o telefone da rádio quase explodiu. Depois do show  saiu acelerado para falar com a moça...  Aí veio o choque, a dor, a frustração: ela era namorada do novo gerente da emissora. Linda, perfeita, sorriso de fechar o comércio e vender todos os ingressos do cinema. Mas comprometida. E logo com quem, o Robertinho.

Marcelo ficou um tempo se voltar ao programa. Nem mesmo nas outras rádios aparecia. Rarearam as festas, quase não ia mais ao teatro. O trabalho no cartório,  que todo mundo dizia que não era para um talento com  tamanha voz, foi tomando o seu tempo e afogando a paixão entre certidões de nascimento e reconhecimento de firmas.

Até que um dia, ela, ainda mais linda, ainda mais encantadora,  entrou à procura do escrivão juramentado. Precisava falar com ele sobre uns documentos de família. Esticou a mão, disse que se chamava Narinha  e precisava de ajuda.Tinha deixado o emprego, porque trabalhar com um ex-namorado mandando não dava certo. Regularizar os terrenos da família seria a melhor forma de garantir uns rendimentos enquanto procurava trabalho em outro lugar. Sem perder tempo, Marcelo perguntou em tom  melódico: Já pensou em trabalhar no cartório?